Page 6 - Telebrasil - Janeiro/Fevereiro 1965
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OS IMPERATIVOS DA REVOLUÇÃO DE MARÇO

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     1. — A pequenês da queda do govêr-    nadas se distribuem os valores dos sis­
 no Goulart dá-nos a exata medida de       temas particulares, e adquirem digni­
 sua estatura moral. Mas se foi um         dades os processos de ação.
 bem inestimável termos tido uma “re­
 volução incruenta”, ela nos dita o im­       6. — Esta Revolução precisa legiti-
 perativo de revelar “a posteriori” as     mar-se no plano ideológico, inclusive
 razões ideológicas subjacentes, que te­   para redimir—se dos êrros, das omis­
 riam vindo à tona espontaneamente         sões e das injustiças que porventura já
 no calor dos conflitos e combates. Uma    tenha praticado...
 revolução pode, é certo, não derramar
 sangue, mas não pode deixar de der­          7. — Se me perguntarem qual o sen­
 ramar idéias.                             tido mais decisivo a atribuir-se a esta
                                           Revolução, direi que é o da “ honestida­
    2. — O primeiro cuidado consiste em    de” ou da “seriedade”, não apenas co­
 situar-nos perante os vencidos, suas      mo valor ético, como exigência moral,
 idéias e atitudes, reconhecendo que       mas também como pressuposto de or­
 grande parte da opinião pública se en­    dem intelectual, como imperativo de
 tusiasmara por algumas verdades des­      opção no plano político e administra­
 vinculadas de suas razões reais para      tivo.
 servirem a planos subversivos de uma
 minoria ousada. Ora, é preciso termos        8. — A nossa desgraça não tem re­
 a coragem de manter-nos fiéis a tais      sultado apenas do fato de termos tido
 verdades, ainda mesmo correndo o ris­     governantes corruptos — por se apos­
 co de parecer que estamos copiando        sarem de bens do povo e cuidarem do
 aqueles que antes combatíamos. O          erário público como se fósse sua pró­
 mesmo princípio, por outro lado, ex­      pria fazenda, mas também por não
 clui possam ser aceitas, sem meticulo­    termos tido a honestidade de confes­
so reexame e sem respeito à ordem es­     sar as nossas naturais incapacidades e
sencial de prioridade, tôdas as refor­     limitações. Vivemos e porfiamos em
                                           viver num clima artificial, com sacri­
 mas prometidas só para não parecer­       fício dos problemas mais urgentes e
 mos “reacionários” .                      primordiais, pela vaidade de ostenta­
                                           ção, de “mostração” do adiável, que
    3. — Aquelas verdades, de meio que     nos permita parecer maiores do que
 eram, passaram a ser fins; e é nisto      somos. Daí as construções precárias e
 que está a fõrça das novas verdades;      precipitadas, com os pés de barro do
é nisto que consiste, por melhor dizer,    supérfluo ou do prematuro.
o sentido da verdade nova.
                                              9. — O povo brasileiro está ansioso
   4. — Uma Revolução, que surge sem       pela verdade primária, por aquela ver­
uma idéia diretora, deve constituí-la     dade que se situa na base de seus pri­
através de um trabalho de exegese,        meiros problemas. Temos vivido, como
que desça serenamente até aos refo­       já escrevi há mais de trinta anos, a
lhos da alma popular. Há duas espé­       fazer precipitadamente e aos saltos o
cies de revoluções: uma “atualiza uma     que outros povos souberam realizar se­
idéia”, na plenitude de sua consciência   renamente e com método. Não temos,
e desenvolvimento; uma outra atende       continuamos a não ter confiança na
a impulsos e a tendências antes de ter-   ação do tempo e, tanto como na época
-se cristalizado em conceitos. A Re­      de Saint-Hilaire, nunca amadurecem
volução de março de 1964 pertence a       os frutos em nossas árvores porque pre­
                                          ferimos comê-los verdes. Sofreguidão
esta segunda categoria: contém uma        de enriquecer, de acumular rapida­
idéia diretora, “in nuce”, em germe,      mente bens materiais ou de cultura,
sem cuja determinação conceituai o        como se o ar do tempo nos estivesse a
fato revolucionário idealmente não se     faltar. E o resultado é que o tempo
legitimará.                               sempre se escoa inutilmente para
                                          quem o desgasta e dilapida tudo que­
   5. — Não se trata somente de ela­      rendo fazer num átimo, assim como se
borar programas administrativos, pois     mantém ôco para quem se conserva
o que se impõe, antes, é a fixação dos    alheio aos problemas da vida; o tem­
quadrantes ideológicos nos quais os       po deve ser sorvido com o superior
                                          domínio de quem sabe que a sua di­
planos de govêmo passem a ter signi­
ficado real. Uma revolução é uma “ to­
talidade de sentido”, em cujas coorde-
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